sábado, 18 de fevereiro de 2012


A politização do carnaval e a atemporalidade das contradições da sociedade

Por Hugo Sousa da Fonseca.
Já se pode ouvir o ressoar dos tamborins Brasil afora. O mês de fevereiro se orgulha por ser o palco temporal de um dos momentos mais aguardado e querido pelo povo brasileiro. Eu não posso ser hipócrita e preciso confessar que também me incluo nos bastidores dessa ansiosa expectativa. Seja com descanso ou folia serelepe, carnaval é tempo de sorrir na companhia de pessoas queridas, de viajar, de conhecer as diversas origens das inúmeras manifestações carnavalescas que se apresentam em proporções continentais.
          Sem dúvida, um dos grandes destinos é o Rio de Janeiro. Quando se fala do carnaval de lá há diferentes modos de reação: alguns se entediam e lembram-se do triste programa de passar 4 dias assistindo à transmissão global; outros, por sua vez, enaltecem o encanto dos encontros do carnaval de rua, algo bastante divertido e bem longe do luxo e alto preço da Marquês de Sapucaí; mas também há os que, como eu, com brilho nos olhos, imaginam as alegorias e sentem o pulsar das baterias das escolas acompanhadas do canto emocionado da comunidade envolvida. Fascinado por essa batida, me proponho a relembrar um outro momento do carnaval carioca. Não faz muito tempo, foi praticamente ontem. Talvez pouquíssimas coisas estejam diferentes, mas a mudança não foi um simples detalhe.
          Durante as comemorações, o Rio de Janeiro, como ainda acontece em todo lugar, se polarizava de modo que quem tivesse mais dinheiro teria um melhor carnaval. A ditadura é quem diz quem pode sambar. Mas algo diferente transformava aquele clima opressor em um momento de reflexão sobre o país que tínhamos. O samba, que nasceu no morro, dava voz às favelas e ao povo que não tinha o privilégio de ser foco dos holofotes dos camarotes mais pomposos. Desta forma, pessoas do Brasil inteiro, enquanto sambavam, ouviam muita gente que, ao cantar para o mundo as suas bandeiras de luta por uma vida mais digna, se orgulhava de suas origens e exigia mudanças. Portanto, façamos uma viagem a um passado não muito distante para provar de um momento em que uma grande massa denunciava injustiças sociais e bradava sonhos de igualdade e democracia real.
          Como primeiro ponto de parada, reavivamos o carnaval da cidade maravilhosa em 1987. O Brasil passava por um momento importante de redemocratização. Democracia era mais que uma novidade, mas uma necessidade. Aguardava-se do ano seguinte a promulgação daquela que seria a “Constituição Cidadã” e a escola de samba Caprichosos de Pilares não fez com que esse importante momento político fosse esquecido. Através do samba Eu Prometo (Ajoelhou, tem que rezar), a comunidade podia cantar:
“Estou cansado de ser enganado
Papo furado e demagogia
Não vão encher (o quê)
A minha barriga vazia
Espero da constituinte
Em minha mesa muito pão
Uma poupança cheia de cruzados
E um carnaval com muita paz no coração”
Através do trecho, podemos aferir a triste atemporalidade dos dizeres acima. 25 anos após aquele carnaval, muitas famílias passarão esses quatro dias – e muitos outros – sem o tão sonhado pão à mesa; 25 anos depois a democracia real continua sendo apenas uma denominação de paradigma estatal e um sonho longínquo; 25 anos depois os políticos brasileiros seguem com a mesma dose de demagogia e corrupção, sem o menor respeito ao ato cidadão que os elegeu. A politicagem toma conta do espírito político e cada vez mais os partidos estão envolvidos em jogos eleitoreiros que ferem os próprios princípios, mostrando que o maior compromisso e objetivo do mesmo é a vitória nas eleições.
          Mas, por falar em coisas que não mudam, o carnaval de 1988 também pode se enquadrar perfeitamente. Quem dava ritmo ao samba eram os bravos descendentes do povo escravizado, os negros de todos os tons de pele. Instaurada a kizomba, que significa a festa do povo negro que resistiu bravamente à escravidão, a Unidos de Vila Isabel saudava o grande guerreiro negro dizendoValeu, Zumbi! e transformando o sambódromo em um quilombo que não mais precisa de se esconder. Pelo contrário, quilombolas abriram o peito para expor o mito que é falar da igualdade em um Brasil segregacionista. Assim sendo, há exatos cem anos da abolição da escravatura, a Estação Primeira de Mangueira não via motivos para comemorar o centenário.
Será…
Que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será…
Que a lei áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão
Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu
Moço
Não se esqueça que o negro também construiu
As riquezas do nosso brasil
(Mangueira, 1988, Cem anos de liberdade, realidade e ilusão)
          1888, 1988, 2008, 2012 e ainda hoje, ninguém viu. No mercado de trabalho e no acesso à universidade os índices apontam para uma estarrecedora exclusão. Exclusão que se comprova através da existência de um sistema penitenciário quase como uma exclusividade negra, uma vez que a etnia se tornou ao longo do tempo um estereótipo criminoso. Com mentalidade colonial, o Brasil reproduz o preconceito de modo que o racismo se mostra entranhado em cada fala. Tudo isso, mostra, enfim, que democracia racial é mesmo um grande mito que tenta “abafar” a realidade da discriminação. A hegemonia branca permaneceu desde então e, por isso, a luta contra a marginalização de um povo que nos constitui, e ajudou a pintar a aquarela brasileira, também deve seguir com firmeza.
          Foi com essa mentalidade, de dar continuidade às críticas do carnaval de 1988, que em fevereiro de 2012 militantes organizados no Comitê contra o genocídio da juventude negra protestaram contra o racismo no shopping Higienópolis na cidade de São Paulo. Reconstruir Palmares é uma tarefa dos vários Zumbis resistentes e inconformados.
          No próximo ano, 1989, algo curioso acontecia. A escola Beija-flor de Nilópolis homenageava os moradores de rua. Com o tema Ratos e urubus, larguem a minha fantasia a escola mudava o conceito de lixo existente na sociedade. Para isso, o carnavalesco Joãozinho Trinta teve a idéia de colocar o Cristo redentor em uma alegoria e cobri-lo de lixos e roupas maltrapilhas, conferindo a ele a idéia deDeus dos mendigos. Porém, a arquidiocese do Rio de Janeiro conseguiu uma liminar na justiça, a qual, entendendo que aquilo significava um desrespeito à fé cristã, proibiu a entrada do Cristo naquelas condições. Mas o fato é que, não satisfeito, o carnavalesco conseguiu fazer com que a imagem estivesse presente. Para isso, cobriu aquele mesmo Cristo com uma lona preta, atendendo à decisão judicial, mas a envolveu com uma faixa que continha a frase: Mesmo proibido, olhai por nós.
          Pode ser que alguns duvidem da necessidade de intervenção divina, mas ninguém pode negar que as pessoas a quem se queria homenagear precisam ser olhadas de perto. Por mais que às vezes sejam comparados a ratos e urubus, falamos de seres humanos que levam uma vida indigna e em meio ao lixo. Casa, escola, comida, emprego, tudo lhes falta. Muitas vezes, a criminalidade é a saída e a penalidade é marcadamente cruel. Porém, não há quem puna o crime que a sociedade comete diariamente contra a vida dessas pessoas. O Estado é violento por duas vezes: primeiro quando não oferece condições de se viver com dignidade e segundo quando penaliza as vítimas pela própria falha. Mas o fato é que abrir os olhos para isso é muito difícil quando a intenção é apenas higienizar as ruas e não deixar com que esse problema nos salte aos olhos.
          Por fim, o ano de 1996. Império Serrano trazia um tema que é hoje alvo das principais manchetes e discussões. Em São José dos Campos, no estado de São Paulo, Pinheirinho foi primeiro alvo de uma ocupação por famílias que simplesmente não tinham onde morar. Posteriormente, a polícia, a serviço do governo, desocupa a área da forma mais truculenta possível: tiros, sangue, mortes. O samba-enredo dizia: 
Quero ter a minha terra, ôôô
Meu pedacinho de chão, meu quinhão
Isso nunca foi segredo
Quem é pobre ta com fome
Quem é rico ta com medo (bis)
(Império Serrano – Samba-enredo de 1996)
          Segundo a Constituição Brasileira, o direito à moradia é um direito social e portanto dever do Estado. Despejar as pessoas é uma atitude inconstitucional, reprimir as famílias e matá-las à queima-roupa é abominável. Uma das grandes frases inspiradoras aos bravos resistentes moradores da região do Pinheirinho é uma grande verdade que diz o seguinte: “quando morar é um privilégio, ocupar é um direito”. Infelizmente, vários prinheirinhos existem pelo Brasil. Sem teto ou sem terra, muita gente ainda tem o relento como lar e lamentavelmente o país segue sem uma política eficaz de reformas urbana e agrária.
          Assim, vê-se que o carnaval pode ser um momento de graves e entristecedoras revelações e de autocrítica principalmente. Muito pouco disso se vê. Décadas se passaram, mas os mesmos questionamentos ainda podem ser feitos e isso confere aos momentos de reunião de várias pessoas uma responsabilidade de manter a capacidade de fazer pensar, de fazer lutar. Na Bahia – e até mesmo no Rio de Janeiro – enquanto os policias estão em greve, os trios elétricos desejam axé aos foliões. Seria muito hipócrita fechar os olhos a um dos momentos de maior tensão que o estado já viu. Não é porque é carnaval e todos querem se divertir que devemos fingir que nada acontece. Com o samba no pé, o que era um solo vira coro e as proporções podem ser ainda maiores: a massa de foliões, estando onde estiver, pode se interar sobre o que acontece entre uma música e outra.
          O bloco d@s indignad@s dança, canta, sorri, mas não se cansa. É por isso que desejo a todos e todas um carnaval sem nenhum cansaço, muito feliz e cheio de reflexões rumo a uma folia com cada vez menos abadás.

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